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quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Eu não tinha bicicleta...

Eu não tinha bicicleta...

Eu era uma criança sem bicicleta. E na minha época ter bicicleta era o máximo, era ser alguém, era um status entre as crianças. E eu não tinha bicicleta. Eu não me trancava em casa e chorava, nem fazia cenas com meus pais por causa de uma bicicleta. Eu só não tinha uma. Muitas vezes eu queria andar de bicicleta, pedia a meus amigos, mas eles estavam ocupados demais curtindo seu privilégio de ter uma bicicleta que não podiam emprestá-la. Não os culpo. De maneira alguma gostaria que tivessem pena de mim. Enfim, quem tinha que se contentar em correr atrás das bicicletas era eu. Eu ouvia os risos das crianças sobre suas bicicletas rondando o bairro todo lá de trás, na distância que eu conseguia chegar correndo. Mas mesmo assim eu era feliz.
Vejo que hoje em dia a coisa não mudou muito. Quem tem um Playstation ou um aparelho de celular deve ter a sua volta outros colegas que pedem misericordiosamente pra ir à casa deles jogar ou ligar pra mãe só pra dizer: “Oi, mãe, sou eu, só to te ligando pra dizer que estou bem”. Não é humilhação, isso é palavra que existe somente no dicionário dos adultos, no das crianças é muito menos traumático. A gente ouvia vários nãos para conseguir um sim. E quando conseguia, era aquela alegria.
Mas apesar de não ter bicicleta eu tinha bola, jogava jogo da velha, adedanha, brincava de pique esconde, pique pega. Não se falava em discriminação e a gozação que sofríamos na escola não era chamada Bulling. Éramos crianças, tudo passava mais rápido. O arranhão que ganhávamos num dia, no outro era uma pequena cicatriz que não doía mais.
Na minha infância brincávamos na rua mesmo, o que me dá uma tristeza terrível do que deve sofrer essa geração apartamento onde a janela é de frente pra outro prédio e as brincadeiras são dentro de uma dessas Lan Houses ou na tela do computador.
Eu era feliz e não sabia. Eu corria atrás de bicicletas, chegava sujo em casa, tinha arranhões pra contar em casa onde os tinha feito, morrendo de medo de levar uma surra daquelas... Brigávamos na rua, xingávamos o outro de remelento, melequento, fedido... Mas no outro dia batíamos à porta do melequento e chamávamo-lo pra brincar na rua. Não tinha mágoa, nem rancor. Uma briga séria durava no máximo uma semana, e logo depois estávamos nós de novo jogando no mesmo time.
Isso nunca foi motivo pra passar anos em terapia, acho que os motivos vieram na adolescência, na não aceitação de si mesmo, na síndrome do rebelde sem causa, e em todas essas situações que surgem enquanto vamos deixando de lado a infância.
Eu nunca tive bicicleta, só fui ter depois de passada a infância. Nunca tive casa com piscina. Nunca fui dono da rua. Simplesmente fui um garoto que tinha dois irmãos mais velhos, no meu quarto havia uma máquina de costurar da minha mãe, (que virou peça de decoração, pois ninguém nunca a usou) a cama de meu irmão (com quem dividia o quarto), e um armário duas portas com uma faixa no meio de giz de cera que separava milimetricamente, o lado de cada um de nós. Era só uma casa de dois quartos e um canto, transformado em quarto para minha irmã, que como minha mãe dizia, era menina e não podia dormir junto conosco (nunca entendi o porquê, ela não era nadinha diferente de nós, só porque usava saia?). E assim eu era feliz.
Depois de algum tempo meu pai foi trabalhando muito, mas muito mesmo, tanto que só o via nos fins de semana no, máximo, aí então fui ganhar minha bicicleta. Que ele me perdoe, mas não foi tão importante naquela época como teria sido antes, mas foi o esforço dele (e meus milhares de bilhetes de “Não esqueça minha Caloi”) que mais me valeram do que a própria bicicleta em si.
Tornei-me abastado, tudo devido ao esforço de meu pai e minha mãe, pude ter patins, vídeo game, televisão no quarto (mesmo sabendo q era a velha de guerra que precisava de uns tapinhas às vezes para funcionar) e tudo o que o trabalho de meus pais pôde me dar (na proporção de um terço, é claro, pois tinha mais dois irmãos para satisfazer).
Mas eu não tive a bicicleta quando eu mais queria ter, e nem por isso tive uma infância menos feliz. Aprendi a correr atrás de meus sonhos, literalmente, aprendi que não era a bicicleta que me faria ser mais legal no meu grupo, nem mais inteligente, nem mais nada. A falta da bicicleta em minha vida desenvolveu em mim paciência para conquistar as coisas e persistência para lutar por elas.
Eu fui uma criança que não tive bicicleta... Ainda bem!

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