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quarta-feira, 26 de outubro de 2011

CORAGEM E MEDO

        As sombras bruxuleavam pela parede. Vinham pela janela do poste em frente a casa. Um silêncio sepulcral reinava. Relativamente, já que o único som que se ouvia era o do ventilador, espalhando o calor para o canto do quarto. Nas sombras, figuras se formavam numa sucessão interminável. Era bonito, mas também era assustador. Uma criança desafiando a si mesma diante de uma ousadia inebriante entre o medo e a coragem. Era uma prova pessoal! Enfrentar as sombras nas paredes e o silêncio era o rito de passagem do menino para o homem.
         Permaneceria lutando contra os monstros das sombras a noite inteira. O menino dizia de si para si que era corajoso, era macho mesmo, viu! Pois sim.
       Eis que o calor foi refrescando, o ar umedecendo, e um cheiro de terra molhada entrou naquele quarto azul de menino. Um vento frio motivou o menino a levantar correndo as cobertas, desligar o ventilador, e voltar pra cama, para encarar suas sombras aterrorizantes que queriam amedronta-lo. Nunca! Jamais perderia a peleja contra aqueles monstros etéreos.
       Delicadamente, pequenos pingos de chuva começaram a cair do lado de fora. De pouco a pouco, tais pingos foram tomando corpo e criando uma sinfonia de plocs plocs pela janela. Assim, foi-se formando uma delicada chuva que soava sua sinfonia e respingava o rosto do menino a medida que se chocavam com o beiral da janela.
       Era uma sensação deliciosa. Enquanto o frescor tocava a pele, a luz refletia nos pingos como uma chuva de diamantes. Durante esse momento, os ouvidos ouviam o som da chuva, também os olhos viam o som da chuva, e a pele sentia o som da chuva. O menino abria a boca a procura do gosto do som da chuva, e seus lábios sorriam com o beijo do som da chuva. Era uma música suave, doce, baixinha. Era o prêmio do menino que vencera as sombras da parede. Os monstros das sombras. O êxtase do menino. Os olhos fechados para ouvir.
       Um raio cruzou o céu e o menino abriu os olhos assustado com aquele clarão que conseguiu ultrapassar as pálpebras fechadas do pobre menino. Num susto, ele fechou a janela e cobriu o rosto.
       Não, não poderia se acovardar ante aquele simples relâmpago! Arrancou a coberta do rosto e encarou altivamente a parede. “Quem esses monstros pensam que são? Pensam que são mais determinados que eu?”. E, agora, fixou o olhar na parede de uma forma que nada iria tirar dele aquela coragem orgulhosa que tinha acabado de conhecer. Nada!
       Mas não foi bem assim que aconteceu. Subitamente um trovão se fez sentir, e começou a tremer todo o quarto do pobre menino que levantou-se imediatamente e foi correndo para o quarto ao lado, sem bater na porta, sem calçar as sandálias, e disse de forma assustada: “ Manhê, posso dormir com você?”. E pensou consigo mesmo: Deixa pra eu ser corajoso amanhã, né!?

Daniel, 27/10/2011 , 01:39

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Sonho de um trem.

Já é noite. Noite varando madrugada afora. E o sono não vem. Na verdade, creio que minha mente não consegue parar de pensar e entrar na paz necessária para receber a chegada do sono. O sono dos justos, não estou pronto para ser o justo dessa vez.
Então, como já é de minha especialidade, mergulho na minha mente, minha mente presente, minha mente vindoura, minha mente pretérita, de um pretérito mais-que perfeito.
Eram dias frios como este, eram dias passados, é o espírito do ontem pairando sobre o hoje. É uma dança de almas cheias de saudades e nostalgias que me tomam de assalto e me colocam aqui, de frente para essas teclas e palavras soltas que se fiam com o fio da nostalgia. É de saudades e de vontades que eu estou cheio. Talvez meu presente não seja o hoje, o agora, talvez o meu presente veio embrulhado em embrulhos já conhecidos, com a surpresa já revelada. Ou então meu presente está no porvir. No presente que não chegou, que não tem hora pra chegar, que não há como prever ou analisar.
E de mente cheia de saudades, não consigo deixar o meu corpo fluir rumo ao mar dos sonhos. É a mente emocional que me ancora a esta praia, esse rio, esse lago. Aproveito a água que me envolve e mergulho na minha imaginação. Agora estouo olhando minha vida pelo retrovisor, as flores por que passei e os espinhos que outrora me furaram a pele, e hoje só são simples cicatrizes, como rugas de idade.
Sentado aqui no meu trem da vida, olho pela janela e vejo a paisagem correndo, se misturando, brincando de viver, na bucólica e doce corrida de um trem que veio lá de trás e vai para não sei onde.
Será que o destino é mais importante do que a própria viagem? Não sei. Creio que não. Mas, apesar de desconhecer o porvir, eu vou com impulso de quem quer chegar a última estação, ao porto seguro, ao fim da viagem que irá recomeçar com um novo destino muito menos conhecido do que o atual, já que não sei de onde partirei.
Mas sei que estou nesta viagem que partiu da semente que brotou numa terra fria e seca e foi nutrida em colo de mãe quente e farto. E hoje, este homem que caminha pelos trilhos da vida, não quer saber se o ponto final será bom ou mau, apenas o fim para o recomeço de uma nova viagem. Uma nova estação. Um novo roteiro. Outro trem? Um ônibus? Um barco? Não me importo tanto com isso.
Mas daqui, do meio do caminho, minha vontade é estender minha mão para fora da janela e tocar os trigais que dançam ao vento, dourados pelo sol. Meu desejo é ser também um pouco trigo, um pouco trigal. Ser paisagem. Natureza viva e lenta. Natureza natural.
E é assim, nesse caminho que é partida, que é chegada, que é caminho, o nirvana da vida mostra que a direção já foi escolhida, que as paradas estão aí, para parar ou continuar, que os cruzamentos estão para as decisões e desejos.
Meu trenzinho segue no seu ritmo, e eu não posso mais continuar tecendo meu pensamento porque, vindo de não sei onde, ela senta ao meu lado no mesmo vagão. Minha filosofia se cala e passo a ser observador dessa realidade utópica. E assim a vejo. Sobre seu corpo esguio, um vestido preto, uma bolsa combinando com os sapatos de salto alto, eu uma sombrinha de senhora às mãos.
Perguntei a mim mesmo quem é essa dama tão vistosa e de ar tão superior que se sentou ao meu lado e não me olhou por um momento.
Meio curioso e ao mesmo tempo tímido, olho novamente para os trigais do lado de fora da minha janela. Percebo que entro em um túnel. Tudo se escurece. Olho  para o lado e não vejo nada. Mas um perfume de rosas bem discreto me faz ter a certeza de que a dama ainda está ao meu lado. Muda. Não consigo parar de pensar em quem é essa dama num quase luto. Nesse exato momento, me esqueço completamente da minha viagem, do meu passado, do meu futuro, e começo a saborear o meu presente. Em minha cabeça, começo a imaginar quem seria tão distinta senhora. Seria uma viúva mantendo seu luto? Uma senhora a espera de seu consorte? Uma mãe indo se encontrar com seus filhos? Uma fugitiva de uma vida medíocre, andando sem rumo com um desejo impetuoso de chegar ao destino.
Saímos do túnel.
Olhei para o lado e a dama permaneceu impassível. Nem um movimento, nem uma palavra, nada.
O maquinista anuncia a próxima estação. A dama faz menção de se levantar e olha nos meus olhos com um olhar convidativo.
Será que ela me pedia para descer ali? Seria ela um sinal de que era a hora de deixar a viagem e partir com ela?
Me decido por ficar. A dama chega até a porta do vagão, me olha, sorri, e, antes de saltar na estação, me diz as duas únicas palavras de toda a viagem: " Boa escolha."
Em uma confusão do que aquilo queria dizer, olho para o lado onde outrora esteve sentada a dama de negro e me deparo com uma foto em sépia antiga tirada de um vagão de um trem, talvez deste mesmo trem, dos mesmos trigais que me ladeavam, e, atrás, em letras de bela caligrafia feminina, lia-se " Último Desejo".
Seria este o epitáfio da bela dama? Seria uma mensagem direcionada a mim?
Só agradeço não ter parado naquela estação, que, talvez, teria sido a minha última, pois quem assinava atrás daquela foto era a Infelicidade.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Era uma vez...

Era uma vez um menino em busca de respostas para o mundo.
Era um menino diferente dos outros: sério, responsável, não se sujava no pátio do colégio.
 Brincava na areia da praia, e não entendia que aquele todo era apenas a comunhão de muitos grãos de areia.
Nadava no mar, mas não sabia que aquilo tudo era também uma união de gotículas de água.
Sentia o sal no mar, mas achava que tinha sido colocado lá por algum desavisado que acabou por salgar o mar.
Esse menino construía castelos de areia com muito amor, detalhes e paciência.
Seu lindo castelo que o mar iria desmanchar. Mas não importava.
 Do castelo se fazia piscina e a felicidade permanecia.
 Sua mãe lhe dera um picolé. Sua única preocupação era não deixar que ele derretesse.
Brincava de procurar conchinhas. Escolhia as mais bonitas e guardava. Talvez dariam para fazer um belo colar. Em casa, as esquecia.
Tinha um mundo inteiro a sua volta, mas vivia sempre em seu mundo particular, com algumas interações com o mundo público.
Esse menino não tinha se dado conta de que ele também era uma gota, um grão, uma praia em si. Esse garoto era indivíduo, mas também era parte de uma multidão.
O Sol batia em sua pele e o garoto nem percebia.
A pele, agora, ardia. A areia ardia. E o menino conheceu a dor de ter se entregado tão profundamente ao prazer de um dia de verão.
Então o menino chorou. Sua mãe lhe deu colo e o levou pra casa.
Desejou nunca mais ir a praia.
Tomou banho de água doce e foi dormir.
E sonhou.
Sonhou que havia crescido, e seu dia na praia foi um dia de amor. Aproveitado bem devagar em seus mínimos detalhes.
E, no dia seguinte, voltou a mesma praia, construiu o mesmo castelo de areia que virou piscina, chupou o mesmo picolé, queimou sua pele mais ainda. E assim foi, dia após dia.

O menino que amou o mar, a areia, o picolé, o colo da mãe, agora lembrava-se da pele que ardia, mas não era a pele que ardia agora.
 O menino ardia por dentro. O sol fez pousada dentro dele.
 E, quando o sol se pôs, queimado ficou o coração do rapaz.
De coração queimado, chorou, limpou seu machucado e foi dormir.
E, no dia seguinte, eis que o amor novamente o chamou.
O medo de se queimar agora existia.
Mas o rapaz entendeu ser parte de um ciclo. Não poderia ser parte de nada, se não se deixasse queimar por dentro mais uma vez.
E assim, entre praias, amores e dores, o homem se deu conta de que não era culpa do sol, nem do amor, nem da dor, era apenas a felicidade que se fez pequena quando pequena, grande quando grande, e eterna enquanto vivo.

Daniel Mancini Bitencourt - 04/01/2011