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segunda-feira, 30 de maio de 2011

Sonho de um trem.

Já é noite. Noite varando madrugada afora. E o sono não vem. Na verdade, creio que minha mente não consegue parar de pensar e entrar na paz necessária para receber a chegada do sono. O sono dos justos, não estou pronto para ser o justo dessa vez.
Então, como já é de minha especialidade, mergulho na minha mente, minha mente presente, minha mente vindoura, minha mente pretérita, de um pretérito mais-que perfeito.
Eram dias frios como este, eram dias passados, é o espírito do ontem pairando sobre o hoje. É uma dança de almas cheias de saudades e nostalgias que me tomam de assalto e me colocam aqui, de frente para essas teclas e palavras soltas que se fiam com o fio da nostalgia. É de saudades e de vontades que eu estou cheio. Talvez meu presente não seja o hoje, o agora, talvez o meu presente veio embrulhado em embrulhos já conhecidos, com a surpresa já revelada. Ou então meu presente está no porvir. No presente que não chegou, que não tem hora pra chegar, que não há como prever ou analisar.
E de mente cheia de saudades, não consigo deixar o meu corpo fluir rumo ao mar dos sonhos. É a mente emocional que me ancora a esta praia, esse rio, esse lago. Aproveito a água que me envolve e mergulho na minha imaginação. Agora estouo olhando minha vida pelo retrovisor, as flores por que passei e os espinhos que outrora me furaram a pele, e hoje só são simples cicatrizes, como rugas de idade.
Sentado aqui no meu trem da vida, olho pela janela e vejo a paisagem correndo, se misturando, brincando de viver, na bucólica e doce corrida de um trem que veio lá de trás e vai para não sei onde.
Será que o destino é mais importante do que a própria viagem? Não sei. Creio que não. Mas, apesar de desconhecer o porvir, eu vou com impulso de quem quer chegar a última estação, ao porto seguro, ao fim da viagem que irá recomeçar com um novo destino muito menos conhecido do que o atual, já que não sei de onde partirei.
Mas sei que estou nesta viagem que partiu da semente que brotou numa terra fria e seca e foi nutrida em colo de mãe quente e farto. E hoje, este homem que caminha pelos trilhos da vida, não quer saber se o ponto final será bom ou mau, apenas o fim para o recomeço de uma nova viagem. Uma nova estação. Um novo roteiro. Outro trem? Um ônibus? Um barco? Não me importo tanto com isso.
Mas daqui, do meio do caminho, minha vontade é estender minha mão para fora da janela e tocar os trigais que dançam ao vento, dourados pelo sol. Meu desejo é ser também um pouco trigo, um pouco trigal. Ser paisagem. Natureza viva e lenta. Natureza natural.
E é assim, nesse caminho que é partida, que é chegada, que é caminho, o nirvana da vida mostra que a direção já foi escolhida, que as paradas estão aí, para parar ou continuar, que os cruzamentos estão para as decisões e desejos.
Meu trenzinho segue no seu ritmo, e eu não posso mais continuar tecendo meu pensamento porque, vindo de não sei onde, ela senta ao meu lado no mesmo vagão. Minha filosofia se cala e passo a ser observador dessa realidade utópica. E assim a vejo. Sobre seu corpo esguio, um vestido preto, uma bolsa combinando com os sapatos de salto alto, eu uma sombrinha de senhora às mãos.
Perguntei a mim mesmo quem é essa dama tão vistosa e de ar tão superior que se sentou ao meu lado e não me olhou por um momento.
Meio curioso e ao mesmo tempo tímido, olho novamente para os trigais do lado de fora da minha janela. Percebo que entro em um túnel. Tudo se escurece. Olho  para o lado e não vejo nada. Mas um perfume de rosas bem discreto me faz ter a certeza de que a dama ainda está ao meu lado. Muda. Não consigo parar de pensar em quem é essa dama num quase luto. Nesse exato momento, me esqueço completamente da minha viagem, do meu passado, do meu futuro, e começo a saborear o meu presente. Em minha cabeça, começo a imaginar quem seria tão distinta senhora. Seria uma viúva mantendo seu luto? Uma senhora a espera de seu consorte? Uma mãe indo se encontrar com seus filhos? Uma fugitiva de uma vida medíocre, andando sem rumo com um desejo impetuoso de chegar ao destino.
Saímos do túnel.
Olhei para o lado e a dama permaneceu impassível. Nem um movimento, nem uma palavra, nada.
O maquinista anuncia a próxima estação. A dama faz menção de se levantar e olha nos meus olhos com um olhar convidativo.
Será que ela me pedia para descer ali? Seria ela um sinal de que era a hora de deixar a viagem e partir com ela?
Me decido por ficar. A dama chega até a porta do vagão, me olha, sorri, e, antes de saltar na estação, me diz as duas únicas palavras de toda a viagem: " Boa escolha."
Em uma confusão do que aquilo queria dizer, olho para o lado onde outrora esteve sentada a dama de negro e me deparo com uma foto em sépia antiga tirada de um vagão de um trem, talvez deste mesmo trem, dos mesmos trigais que me ladeavam, e, atrás, em letras de bela caligrafia feminina, lia-se " Último Desejo".
Seria este o epitáfio da bela dama? Seria uma mensagem direcionada a mim?
Só agradeço não ter parado naquela estação, que, talvez, teria sido a minha última, pois quem assinava atrás daquela foto era a Infelicidade.